Na Cova Dos Leões: Como Ficam As Concessões Rodoviárias Com O “Boom” Das Ferrovias?

A crise causada pela pandemia e a necessidade urgente de retomada do crescimento econômico trouxe à pauta do dia uma nova, porém antiga alternativa para busca de investimento privado: a outorga de autorizações de exploração ferroviária. Editada no final de agosto, a Medida Provisória nº 1065/2021, “o novo marco do setor ferroviário”, simplifica processos de autorização para exploração de ferrovias, com objetivo de fomentar o investimento privado no setor e ampliar a infraestrutura logística no País. Há, contudo, um grande desafio: como compatibilizar o avanço da malha ferroviária na concorrência direta com as antigas concessões rodoviárias?

Mudança logística

A MP abre caminhos para uma virada de chave na matriz logística brasileira, trazendo desafios ao tradicional modelo rodoviário, que, sem o apoio governamental, pode enfrentar dificuldades à concorrência direta ferroviária. A Medida Provisória nº 1.065 está nos seus primeiros 60 dias de vigência e aguarda votação no Congresso Nacional. A matéria já era objeto do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 261/2018, que, recentemente, foi aprovado pelo Senado Federal e está prestes a ser votado pela Câmara dos Deputados.

Ambas as propostas dão o tom da conversa: desburocratizar os processos administrativos dos investimentos ferroviários no Brasil com o objetivo de viabilizar a retomada econômica pós-pandemia. O foco no projeto ferroviário brasileiro é uma tentativa de buscar soluções para a estagnação econômica sem que o Governo Federal precise dispender grandes quantias de recursos públicos, uma vez que a nova onda do setor está calcada majoritariamente no investimento privado.

Outro benefício é movimentar o mercado de infraestrutura, que usualmente possui grande impacto na formação do PIB, além de gerar empregos – de acordo com a exposição de motivos da MP, o Governo estima a criação de 80 mil novos postos. A iniciativa não é nova e já vem sendo promovida pelos Estados do Mato Grosso, Pará e Minas Gerais que, nas brechas do art. 21, inc. XII, da Constituição Federal, têm autorizado projetos de ferrovias de abrangência estatual.

Se antes essa possibilidade estava nas entrelinhas da Constituição, a MP 1.065 passou expressamente a reconhecer a possibilidade de outorga pelos Estados, Distrito Federal e Municípios de serviço de transporte ferroviário das ferrovias que não se enquadrem nas hipóteses de competência exclusiva da União. O reconhecimento é um ganho à autonomia dos entes federativos e um avanço para o setor ferroviário, cujos investimentos podem ser diversificados com a participação de investidores locais diretamente beneficiados com a implantação do novo modal de abrangência estadual.

Rodovias

A importância da diversificação do modal logístico fica mais clara se pensada com exemplos. O setor do agronegócio é extremamente dependente do transporte rodoviário. Pesquisa recente da USP, estimou que 67,4% da produção brasileira de soja, por exemplo, foi transportada por meio das rodovias no ano de 2019. O volume é maior para a produção de milho, em que 69% foram transportados pelo sistema rodoviário.

A dependência do modal rodoviário tem trazido alguns problemas ao agronegócio: o aumento do valor dos combustíveis é a contingência mais recente, que encarece o frete dos produtos, aumentando seu preço final e diminuindo a competitividade dos produtos, principalmente no mercado internacional. Há pouco tempo, a ameaça de mais uma edição da greve dos caminhoneiros assustou agropecuaristas. Na edição passada, ocorrida entre maio e junho de 2018, os prejuízos superaram 6 bilhões de reais. Em linhas gerais, um dos setores produtivos que mais lucra no Brasil tem enfrentado diversas dificuldades com o modelo logístico nacional: as rodovias. Com capital e (como consequência disso) com o aval do Governo Federal, fica mais fácil buscar uma alternativa ao problema.

Nesse sentido, espera-se que as ferroviais beneficiem diretamente o setor agropecuário. Já existem projetos específicos, como é o caso do Ferrogrão, projeto de ferrovia federal sob regime de concessão comum ligando o Pará ou Mato Grosso com a finalidade de escoar a produção de grãos com destino ao mercado internacional. Em menos de dois meses de vigência da MP, o Governo Federal já recebeu dezenove pedidos de autorização para ferrovias. Assim, o “boom” ferroviário e a concorrência direta entre ferrovias e rodovias parece apenas questão de tempo. Algumas ferrovias realizarão percursos de escoamento de mercadoria similares ou iguais àqueles que já são operacionalizados por rodovias concedidas. Em alguns anos, a concorrência intermodal será uma realidade e caberá ao poder concedente se preparar para enfrentar eventuais problemas dela advindos.

Concorrência

Não se está a dizer que a concorrência é um problema per se. Na verdade, o que se acredita é na necessidade de ajustar (e compatibilizar) os interesses legítimos da diversificação da malha logística brasileira e os interesses igualmente legítimos dos concessionários de rodovias, cujos contratos foram firmados décadas antes – e sem qualquer previsibilidade – do marco do setor ferroviário. A competição é bem-vinda, mas não pode ser realizada com a demonização do modal ferroviário ou como uma verdadeira carnificina dos antigos players de mercado, especialmente nos casos de haver concorrência direta entre as novas rotas ferroviárias e as antigas rotas rodoviárias.

Uma das consequências da concorrência intermodal direta sobre os contratos de concessão rodoviária vigentes é a redução do volume de tráfego. E, nesse ponto, os contratos de concessão rodoviária antigos largam atrás. Muitos deles foram firmados numa época em que a retomada do setor ferroviário – tal como se desenha hoje – não era nem ao menos cogitada. Esses ajustes não possuem cláusulas contratuais de reequilíbrio econômico-financeiro disciplinando a concorrência entre rodovias e ferrovias.

Nesses casos, a necessidade de reestabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro deve ser discutida entre o concessionário e o poder concedente, sob pena de lançar as antigas concessões à cova dos leões e fadar esses ajustes, em casos mais graves, ao sucateamento da malha rodoviária concedida. A necessidade de negociar e incluir o evento entre as hipóteses de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão é medida que se impõe para garantir a efetividade da concorrência entre os modais e a não extinção de um em detrimento do outro.

O poder concedente não pode simplesmente abandonar os antigos concessionários de rodovias à própria sorte, após décadas de investimentos nas rodovias brasileiras. Não só não pode como não deve. As concessionárias têm direito ao reequilíbrio com fundamento no – de longa data conhecido - art. 65, II, “d”, da Lei Federal nº 8.666/1993 cujo conteúdo é adaptado no art. 124, inc. II, “d”, da Lei Federal nº 14.133/21 (“Nova Lei de Licitações”). Ambas as previsões legais estabelecem a possibilidade de reequilíbrio quando verificadas situações imprevisíveis à época da celebração do ajuste e que impactam diretamente o contrato firmado entre a Administração e o Particular.

Além da previsão legal no âmbito do regulamento dos contratos administrativos, deve ser dado cumprimento ao princípio da isonomia. Isso porque minutas de novos contratos de concessão rodoviária no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) já tem reconhecido o direito ao reequilíbrio dos contratos quando houver concorrência intermodal, especialmente com ferrovias. É o caso do Edital nº 02/2021 do PPI, que se refere à Concessão da BR-163/230/MT/PA e foi lançado no início desse ano, o qual previu mecanismos de mitigação de riscos de demanda decorrentes da concorrência com ferrovias, em especial o Ferrogrão e da extensão da Malha Norte da Rumo. Nesse caso, o risco decorrente da existência de qualquer nova rota ou caminho alternativo por qualquer modal terrestre é do Poder Concedente.

Mesma situação, mesma solução. Os antigos contratos de concessão devem ser reequilibrados na medida em que os novos projetos de ferrovias sejam implementados e executados. A concorrência intermodal deve servir para somar alternativas logísticas para o escoamento da produção brasileira. O interesse público está na ampliação da nossa malha logística e na concorrência saudável entre os particulares que operam as rodovias e aqueles que virão operar as novas ferrovias. A Administração, nesse caso, deve servir como ponte para ajustar os interesses legítimos dos agentes econômicos e da população.

*Natalia de Sousa da Silva - Advogada da Manesco Advogados | Extraído da Revista digital Guia Marítimo - Novembro 2021.


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